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UOL – Artigo: Temos direito a nomes indígenas? – Por Julie Dorrico

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Há no Brasil um gesto coletivo de reaver os nomes indígenas, proibidos pela lei imperial pombalina e discriminados consecutivamente. O direito nacional promulgado pela Constituição Federal (1988) de identificarem-se como povos originários; internacionalmente, o direito à autodeterminação garantido pela Convenção 169 da OIT (1989); e, mais recentemente, o direito à retificação dos nomes brasileiros para os indígenas, pelo Conselho Nacional de Justiça, na Resolução nº 3 (2012), abriram outras possibilidades de afirmação indígena. 

 

Politicamente esta atitude já ocorre desde a década de 1980 em nível continental. No âmbito (pluri) nacional, os artistas, escritores, políticos, ativistas, não obstante o nome civil brasileiro, passaram a utilizar os nomes de povos desde a década de 1970 como uma desobediência ao estatuto que tinha por valor a integração, isto é, o desaparecimento da identidade indígena.

 

Mais recentemente, testemunhamos nomes civis e culturalmente brasileiros serem alterados para nomes que pertencem às tradições dos respectivos povos, tais como Yaguarê Yamã (Maraguá), em 2012; a família Kambeba Omágua-Yetê Anaquiri (Omágua/Kambeba), em 2019; Márcia Kambeba (Omágua Kambeba), em 2021; Îybatãtupã Gûarini (Tupinikim), em 2021; para dar alguns exemplos. 

 

Abya Yala – renomeação simbólica em nível continental

 

Emil’ Keme, indígena Maya Kiché, explica em seu artigo “Para que Abiayala viva, las Américas deben morir: Hacia una Indigeneidad transhemisférica” porque empregamos o nome Abya Yala, ou Abiayala para nos referirmos em nível continental a este continente que foi renomeado pelos colonizadores europeus como América. Emil’ relembra a visita da liderança aymara, Takir Mamani, do estado plurinanacional boliviano, ao povo Guna, localizado na Guatemala.

 

As lideranças Guna pediram a Mamani, uma vez que este viajava a foros internacionais do movimento indígena em todo continente, que passasse a mensagem de que o verdadeiro nome do continente é Abya Yala. Mamani assentiu e concordou que “colocar nomes forasteiros a nossas vilas ou cidades e continente é equivalente a submeter nossa identidade a vontade dos invasores e seus herdeiros”. Por fim, “renomear o continente é o primeiro passo para a descolonização epistêmica e o estabelecimento de nossas soberanias ou autonomias indígenas”.

 

Embora o nome Abya Yala não seja efetivo, simbolicamente ele é empregado por lideranças e intelectuais para afirmar o território como indígena para os povos originários. 

 

Proibição dos nomes indígenas do Diretório Pombalino à Resolução nº 3 do CNJ

 

Conforme pesquisei no meu doutorado sobre o uso dos nomes indígenas adotados pelos escritores indígenas, cheguei ao seguinte resultado: O direito ao nome próprio tradicional foi negado no século XVIII, e, embora essa lei tenha sido revogada quarenta e um anos depois, o costume de negar o nome próprio aos indígenas continuou vigente no Estado brasileiro. O artigo que fala da proibição é o de número 11:

 

“A Classe dos mesmos abusos se não pode duvidar, que pertence também o inalterável costume, que se praticava em todas as Aldeias, de não haver um só Índio, que tivesse sobrenome. E para se evitar a grande confusão, que precisamente havia de resultar de haver na mesma Povoação muitas Pessoas com o mesmo nome, e acabarem de conhecer os Índios com toda a evidência, que buscamos todos os meios de os honrar, e tratar, como se fossem Brancos; terão daqui por diante todos os Índios sobrenomes, havendo grande cuidado nos Diretores em lhes introduzir os mesmos Apelidos, que os das Famílias de Portugal; por ser moralmente certo, que tendo eles os mesmos Apelidos, e Sobrenomes, de que usam os Brancos, e as mais Pessoas que se acham civilizadas, cuidarão em procurar os meios lícitos, e virtuosos de viverem, e se tratarem à sua imitação”. 

 

A boa intenção, porém, como podemos perceber historicamente atuou no apagamento das organizações sociais indígenas, ressoando ao longo dos anos sucessivos. A legislação indigenista, intitulada Estatuto do Índio, sob a forma da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, usava a lei comum para nomear os indígenas, o que significava que os nomes indígenas eram repudiados ou não eram levados em conta por serem considerados vexatórios.

 

No que se refere aos nomes próprios, o Estatuto do Índio foi contestado apenas no ano de 2012 pelo Conselho Nacional de Justiça, na Resolução nº 3, de 19 de abril de 2012, que dispõe sobre o assento de nascimento de indígena no Registro Civil das Pessoas Naturais e torna possível o direito ao nome indígena. Dessa maneira, a assinatura do nome próprio mais o nome de povo, ou a assinatura do nome ancestral, desde a década de 1990, nas obras literárias, corresponde a um ato de resistência dentro do movimento literário indígena, como manifestação de orgulho de seus nomes proibidos secularmente.

 

A todos os aliados e indígenas 

 

O escritor Yaguarê Yamã, na obra “A todos os indígenas e aliados: reflexão sobre o Movimento Indígena atual” (Cintra, 2019), informa que assim que saiu a lei da retificação para nomes indígenas, foi em busca de seus direitos. Antes, foi registrado como Ozias Glória de Oliveira, que segundo ele é um nome branco imposto a partir de um sistema racista, eurocêntrico e colonizador. Hoje, seu primeiro nome é Yaguarê Yamã, e seu sobrenome Aripunãguá, são oficiais na certidão e Registro Civil. Ele iniciou o processo em 2014, e em 2016 pôde adquirir os documentos oficiais. Conforme seu testemunho, foi o primeiro indígena a usar o direito da lei de retificação.

 

Compartilho, ainda, sua reflexão acerca da importância dos nomes e sobrenomes, nomes dos topônimos: “Os nomes dos lugares, dos rios, dos lagos, das aldeias e cachoeiras. Manter o nome ou resgatar os nomes originais é valorizar o que é nosso”. Também tem pensamento semelhante aos objetos, culinária e esportes pertencentes às culturas indígenas: “Lembrar dos utensílios que usávamos e hoje não mais usamos. Dar nomes para a vasta culinária (bebidas, comidas, pratos…) ou mantê-los. Praticar esportes tradicionais e propagá-los usando os mesmos nomes nas línguas”.

 

Cartilha da FUNAI (2014) orienta indígenas ao direito à retificação e especificidades culturais 

 

A Cartilha sobre Registro Civil de Nascimento dos Povos Indígenas foi lançada pela FUNAI em 2014. Embora reconheça os direitos plenos dos indígenas cidadãos brasileiros, ela ainda demanda o documento técnico, o RANI (Registro Administrativo de Nascimento Indígena), emitido pela FUNAI como documento oficial até a integração ser realizada. A Constituição Federal (1988) mesmo tendo reconhecido os direitos indígenas, não conseguiu anular a tutela nos registros. Para muitas famílias indígenas que vivem nos municípios, mas que não vivem mais em comunidades ou terras indígenas demarcadas, o nome indígena não é um direito, ficando sob o jugo dos nomes brasileiros.

 

Temos direitos aos nomes indígenas

 

Uma das estratégias dos escritores indígenas para afirmar os pertencimentos ancestrais foi utilizar o nome do povo como sobrenome. Amparados pela lei do direito autoral, que permite usar outro nome artístico em obras editoriais, os escritores desde a década de 1970 já assinavam com os nomes que levam ainda hoje, mesmo não sendo os seus respectivos nomes civis. É o caso de Eliane Potiguara, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Marcos Terena, entre outros. Hoje, com a lei da retificação garantido aos povos indígenas, vemos o fortalecimento do movimento indígena por meio dos nomes ancestrais.

 

Se você é parente e quer registrar seu neném com um nome que tenha significado para o seu povo, leve a cartilha, e invoque a Constituição Federal e a Convenção 169 da OIT, pois é um direito que nós temos, de nível estrutural. Para finalizar essa coluna encerro com um poema de minha autoria sobre a beleza dos nomes indígenas. 

 

“Meu nome ancestral”, de Julie Dorrico:

 

Eu tenho um nome que ainda desconheço

Um nome antigo, tecido nas fibras de inajá

Eu tenho um nome pelo qual os deuses me invocam intimamente

Eu lhes escuto de dentro chamar

Eu também tenho um outro nome, que pertence à língua e bandeira que persistem em me borrar do papel branco. Mesmo borrado, o grafite resiste, mesmo apagado, a marca do traço fica, não tão invisível, assim como eu.

Escrevo repetidamente o nome que me foi dado como um nome forasteiro, que vem para explorar, mas não fica ou fica à contragosto.

Reescrevo esse nome muitas vezes, e embora ele esteja em meus documentos oficiais, ele não é meu, assim como os muitos nomes de nossas terras que foram renomeadas por – ironicamente, mas não tão risível – forasteiros. 

Eu tenho um nome que é a pele do meu corpo

E cobre a extensão de dentro de fora de mim

A confissão de quem sou

O povo (Macuxi) à qual pertenço

Meu nome que eu ainda desconheço

é da terra

E logo lhe encontrarei

Pois estamos destinadas a ser uma só.

 

*Julie Dorrico é doutora em teoria da literatura na PUC-RS. Autora da obra “Eu sou macuxi e outras histórias” (Caos e Letras, 2019) que venceu o 1º Lugar no Concurso Tamoios de Novos Escritores Indígenas, promovido pelo Instituto UK’A e Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ, 2019). Descendente do povo macuxi (Roraima). Organizadora da Coleção Memórias Ancestrais, obras de autoria indígena, pela Editora Tekoha (2021). Este é um espaço-terreno para reflorestar simbolicamente a educação brasileira. Buscando fortalecer o uso da lei 11.645/2008 que tornou obrigatório o ensino das culturas e histórias afro e indígenas em todo currículo escolar, esta coluna busca compartilhar iniciativas, projetos e temas indígenas que possam fortalecer a educação étnico-racial no país.

 

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

 

Fonte: Portal UOL

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