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O Estado de S.Paulo – Artigo: Um olhar empático (e jurídico) sobre a retificação de registro civil pela população trans: o direito ao nome como direito à vida

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Por Marília Golfieri Angella

Já pensou quão potente é exercer o direito de ser quem você é? Se você não pensou sobre isso, você é um privilegiado! Agora vamos entender um pouco mais sobre um dos avanços da pauta LGBTQIA+ para não deixar a discussão apenas no recentemente findado mês Þ junho? Entender os braços desta discussão é garantir, acima de tudo, o direito à vida do próximo e você pode ser um agente transformador nesta luta.

Cis ou trans? Quem é você? Como pessoa cis, os questionamentos sobre seu nome devem ter ficado limitados ao gostar ou não gostar, a uma homenagem a algum parente ou ao sonho dos pais de ter um filho com o nome “X” ou “Y”, o momento da escolha, quem registrou, e por aí vai. Agora, para a população trans, certamente o nome de registro representa muito além disso, envolvendo questões complexas que exigem um olhar empático para o avanço das pautas sociais no nosso país.

Por muito tempo, a alteração de nome social pela população trans só era possível mediante sentença judicial – embora não houvesse qualquer entrave na Lei de Registros Públicos que impedisse tal retificação, muito pelo contrário, já que era permitida a alteração em razão de situação vexaminosa – e a exposição perante os Tribunais de Justiça necessariamente passava por inúmeros questionamentos e esbarrava em preconceitos não velados, condicionando-se, em determinados casos, a alteração à realização da cirurgia de alteração de sexo, que pode representar um alto risco até mesmo à vida da pessoa que a pretende. Era como exigir a prática de um ato violento e mutilante, quiçá não desejado, a alguém que buscava apenas o reconhecimento de sua existência!

Desde 2018, em significativo (e tardio) avanço, em continuação ao movimento que ocorrida no próprio Judiciário, o CNJ reconheceu a possibilidade de se realizar a alteração do nome no registro civil através de um procedimento administrativo. O acesso à ordem jurídica justa, tão defendido pelo ilustre Professor Kazuo Watanabe (Ed. Del Rey, 2019), se fez valer! O acesso a este direito fundamental de ser quem se é, estava, enfim, legitimado pelo Estado!

Agir e pensar de modo diverso, sem dúvida, seria afrontar direitos fundamentais das pessoas T’s, ferindo sua dignidade, liberdade, intimidade, vida privada, honra, imagem e saúde, preservadas pela Constituição Federal (arts. 1º, III, 5º, caput e X, e 6º), tendo em vista que tais direitos estão em constante evolução em nossa sociedade, com novos significados, valores e necessidades de adaptação da tutela estatal.

E um direito não só restrito ao cenário nacional, pois a Convenção Americana de Direitos Humanos (o famoso Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil, em seus arts. 5º e 11, garante o direito de toda pessoa ter respeitada sua integridade física, psíquica e moral e, também, sua honra e dignidade, assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. XXII, e o Protocolo de San Salvador, no art. 10. Incontáveis normas, portanto, nacionais e internacionais, que regulamentam este direito fundamental!

Por qual motivo, então, dizemos que o avanço se deu de forma tardia? O Brasil adotou os Princípios de Yogyakarta, estabelecidos em 2006 na Indonésia, nos quais, já em sua introdução, se colocava que “a orientação sexual e a identidade de gênero” são “essenciais para a dignidade e humanidade de cada pessoa e não devem ser motivo de discriminação ou abuso”.

Após tímidos avanços de reconhecimento do direito de usar o nome social em algumas esferas administrativas, ainda que sem possibilidade administrativa de se fazer definitivamente a alteração, em 2012, a jurista Maria Berenice Dias também dizia que “um dos instigantes fenômenos que estão a reclamar regulamentação é o da transexualidade, pois diz com a identidade do indivíduo e se reflete em sua inserção no contexto social. A proteção do transexual se refere ao direito à intimidade, um dos elementos do direito de personalidade, que merece destacada atenção constitucional, quando se fala em tutela da dignidade da pessoa humana. (…)”. (Direito à Identidade Transexual. in Direito, relações de gênero e orientação sexual. SÉGUIN, Elida (coord.), p. 21).

Foram precisos mais alguns anos até que a regulamentação viesse a realmente adaptar o ordenamento brasileiro a este direito tão fundamental, que é ser reconhecido por um nome compatível com sua identidade de gênero. Agora nos perguntamos: ainda que positivado, ou seja, ainda que escrito e vigente, tal direito é de fato exercido pela população T de forma plena e segura?

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo! Apenas em 2020, segundo um levantamento feito pelo G1, 175 mulheres trans foram mortas, majoritariamente negras e em situação de prostituição. Quando, por falta de escolha, se perde o direito existir, estudar, trabalhar dignamente, sonhar, ter uma casa, uma família, sendo constantemente ignorado pela sociedade, passando fome e frio, será que a alteração do nome passa a ser uma real preocupação?

A possibilidade de se alterar o registro civil para validação do nome social foi um significativo avanço, mas o olhar empático à causa trans requer um esforço coletivo superior: é preciso, antes de tudo, garantir o direito à vida e o respeito à dignidade dessa população ainda estereotipada e marginalizada.

Mas mulher trans era homem ou mulher?”. Essa pergunta revela a falta de consciência social, que afronta direitos fundamentais da população T, de modo que passa a ser utópico garantirmos, enquanto Estado, o direito ao nome social, quando a luta prescinde de elementos muito mais basilares, tais como visibilidade e segurança pública para que, a cada dois dias, uma mulher trans não seja morta no Brasil.

Dizia a citada Carta de Yogyakarta que “toda pessoa tem o direito de ser reconhecida, em qualquer lugar, como pessoa perante a lei”. Contraditório dizer que toda pessoa tem o direito de ser pessoa? Não. LGBTQIA+ é mais que uma sigla, é uma causa que ultrapassa as barreiras juninas do orgulho e deve ser respeitada para que todos nós, todas e todes, estejamos em igual nível de proteção legal, garantidos em nossa dignidade e liberdade, tendo nossos nomes e gêneros respeitados e aceitos, tal como manda a nossa Constituição. Quando respirar passa a ser uma batalha no Brasil, respirar com liberdade, sem medo de morrer assassinado, é uma batalha ainda mais intensa e dura.

*Marília Golfieri Angella é especialista em direito de família, gênero e infância e juventude e sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella – Advocacia familiar e social

Fonte: O Estado de S.Paulo

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