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Artigo – Execuções fiscais e as comunicações da resolução 547 do CNJ: Até quando, ó Catilina, abusarás?

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É nítida a aproximação das execuções fiscais e a atividade extrajudicial na recente resolução 547 do CNJ, de 22 de fevereiro de 2024, que institui medidas de tratamento voltadas à racionalização e eficiência na tramitação de execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário em observância à tese fixada no julgamento do Tema 1184, de Repercussão Geral, do STF, no seguinte sentido: “É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor pela ausência de interesse de agir tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa, respeitada a competência constitucional de cada ente federado”. A tese determinou, também, que o ajuizamento de execuções fiscais dependerá de duas providências prévias: 1) a tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e, 2) o protesto do título, salvo motivo de eficiência administrativa, mediante comprovação da inadequação da medida ou nos casos de dispensa.1 

 

A Resolução remete à análise dos dados do Relatório Justiça em Números 2023 (ano-base 2022), que aponta mais uma vez as execuções fiscais como um dos principais fatores de morosidade do Poder Judiciário, correspondendo a 34% do acervo pendente, com taxa de congestionamento de 88% e tempo médio de tramitação de 6 anos e 7 meses até a baixa. O mesmo levantamento estimou que 52,3% das execuções fiscais têm valor de ajuizamento inferior a R$10.000,00, enquanto o custo mínimo de uma execução fiscal alcança a quantia de R$9.277,00 (Cf. Notas Técnicas 06 e 08 de 2023, do Núcleo de Processos Estruturais e Complexos do STF).2

 

Nesse contexto, a norma administrativa legítima, em seu art. 1°, a extinção do feito executivo de baixo valor sob fundamento da inexistência de interesse de agir, desde que o valor seja inferior ao valor de R$10.000,00, quando da data do ajuizamento da execução, observados, para apuração, a soma de valores de processos apensados e ações propostas em face do mesmo executado (§2º). A extinção depende da inexistência de “movimentação útil” há mais de um ano sem citação do executado ou, ainda que citado o devedor, que não conste notícia de localização de bens penhoráveis (§1º) sendo possível ao ente requerer suspensão do feito por 90 (noventa) dias, caso demonstrada a possibilidade de localização de bens do devedor (§5º).3

 

O ajuizamento da execução fiscal de baixo valor, a teor do disposto no art. 2°, dependerá do atendimento de dois requisitos cumulativos. O primeiro é a prévia tentativa de conciliação ou a adoção de solução administrativa do conflito. A resolução estabelece que a existência de lei geral de parcelamento ou oferecimento de vantagem na via administrativa é suficiente para caracterizar a tentativa de conciliação (§1º). Tal circunstância não exclui a possibilidade de atuação dos tabeliães de notas na conciliação, como previsto no art. 7º-A, II, da lei 8.935/94, incluído pela lei 14.711/23, previsão que tornaria mais eficaz o propósito de evitar o ajuizamento da demanda.4 A adoção de solução administrativa resta configurada pela simples notificação do executado para pagamento antes do ajuizamento da ação (§2º), situação que já acontece. Ademais, caso a providência tomada pelo ente exequente esteja prevista em ato normativo do ente, opera-se presunção de cumprimento desses requisitos.5

 

O segundo requisito para ajuizamento da execução é o protesto do título (art. 3º). No entanto, a norma apresenta um rol exemplificativo para sua dispensa em três hipóteses: (1) comunicação da inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros de proteção de crédito; (2) averbação, inclusive eletrônica, da CDA nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto e penhora e, por fim; (3) indicação, no ato do ajuizamento, de bens ou direitos penhoráveis de titularidade do executado.6 O protesto é dispensado quando se mostrar medida inadequada, por motivo de eficiência administrativa.

 

Percebe-se a intenção de evitar o ajuizamento da ação executiva pela adoção de mecanismos extrajudiciais que tutelam o exercício do direito do credor. Depreende-se, também, que a despeito da “ausência de interesse de agir em execuções fiscais de baixo valor” (Cf. Tema 1184) associada ao critério custo-benefício, as execuções fiscais de valor abaixo de R$10.000,00 continuarão a existir – dentro dos parâmetros delineados pela Resolução. 

 

O texto normativo poderia ter terminado aqui. Porém, o último artigo da resolução dispõe: “Art. 4º. Os cartórios de notas e de registro de imóveis deverão comunicar às respectivas Prefeituras, em periodicidade não superior a 60, todas as mudanças na titularidade de imóveis realizadas no período, a fim de permitir a atualização cadastral dos contribuintes das Fazendas Municipais”.

 

Salta mais uma conexão com o extrajudicial, agora com os tabelionatos de notas e os registros de imóveis, envolvendo compartilhamento de dados. Gize-se que o ato de comunicação de “todas as mudanças na titularidade de imóveis” [sic.] caracteriza tratamento de dados pessoais, a teor do disposto no art. 5º, inc. X, da lei 13.709/18, podendo a situação ser enquadrada como operação de transmissão ou distribuição, sujeita aos princípios norteadores das atividades de tratamento, entre eles, o da finalidade, da adequação, e da necessidade.7

 

Tendo em vista a previsão do compartilhamento de dados entre os tabeliães de notas, os registradores de imóveis e as prefeituras, não há dúvida de que o dispositivo demanda uma análise sob o escopo protetivo da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD – cuja observância é crucial, diante da previsão de submissão à lei tanto pelo Poder Público quanto pelas serventias extrajudiciais. Portanto, é de questionar-se: a exigência de comunicação dos dados relativos às mudanças na titularidade de imóveis por notários e registradores atende aos princípios da LGPD?

 

De acordo com o art. 23, caput, da LGPD, o tratamento de dados pessoais por pessoas jurídicas de direito público e pelos notários e registradores deverá ser realizado para o atendimento da finalidade pública, persecução do interesse público, execução das competências legais ou cumprimento das atribuições legais do serviço público, além de observar os princípios insculpidos nos incisos do art. 6º, logicamente.8

 

Quanto à finalidade, a lei determina propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular para realização do tratamento, sendo vedada operação posterior de forma incompatível com essa finalidade. No âmbito do Poder Público, o tratamento dos dados pessoais deve atender a uma “finalidade pública”, a qual, conforme orienta a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, precisa ser (i) legítima, o que significa dizer, lícita e compatível com o ordenamento jurídico, além de estar amparada em uma base legal que autorize o tratamento; ser (ii) específica, permitindo delimitar o escopo do tratamento e estabelecer as garantias necessárias à proteção dos dados pessoais; (iii) explícita, ou seja, expressa com clareza e precisão; e (iv) informada, por meio de linguagem simples e fácil compreensão.9

 

Da leitura do art. 4º, caput, da Resolução extrai-se que, em suma, o tratamento previsto consistente na transmissão dos dados pessoais pelos notários e registradores, tem por finalidade a atualização cadastral dos contribuintes das Fazendas Municipais. De início, constata-se a inobservância ao princípio da finalidade, na medida em que a norma não delimitou o escopo do tratamento, ou seja, não define como será feita a transmissão dos dados, aliás, sequer indicou quais são os dados pessoais que seriam objeto da comunicação, o que tem reflexo direto em outro princípio da LGPD: o da necessidade. Segundo o princípio, o tratamento deverá ser limitado ao mínimo necessário à realização de suas finalidades, abrangendo os dados (i) pertinentes, (ii) proporcionais e (iii) não excessivos em relação a ela. Mais do que isso. Nas palavras da própria ANPD: “Da mesma forma, esse princípio desaconselha o próprio tratamento de dados pessoais quando a finalidade que se almeja pode ser atingida por outros meios menos gravosos ao titular de dados.”. 10

 

É justamente aqui que a atenção fica voltada, pois tal comunicação, na forma prevista, é desnecessária e inadequada. Desnecessária, porque a finalidade apontada da norma pode ser alcançada por outros meios menos gravosos, na exata medida em que os sistemas utilizados pelas Prefeituras armazenam as informações relativas às transmissões de titularidade de imóveis antes mesmo do ato notarial ou do registro do título. Inadequada, porque consequentemente inexiste compatibilidade do tratamento com as finalidades almejadas, mormente em razão dos dados serem coletados na ponta, pela própria municipalidade. 

 

Explica-se: para lavrar uma escritura pública que tenha por objeto a transmissão de direito real sobre bem imóvel, a lei determina que seja apresentado ao tabelião de notas o comprovante do recolhimento do imposto de transmissão, o que será consignado no ato notarial (Cf. lei 7.433/85).11 No caso de transmissões onerosas, inter vivos, as partes interessadas declaram o valor do imóvel e o município procede à avaliação, sendo essa a base de cálculo para cobrança do imposto de transmissão. O tabelião preenche o formulário para avaliação do bem objeto da transmissão, informando dados do adquirente, do transmitente, nome completo e número do CPF, e do imóvel, tudo no sistema do próprio município, que depois de apurado o valor, gera uma guia de recolhimento. Somente após o pagamento da guia é que a escritura será lavrada e registrada no Registro de Imóveis. 

 

Assim, inequívoco que o município detém os dados pessoais necessários e suficientes para atender à finalidade do tratamento previsto no art. 4º, caput, da Resolução, não havendo sequer que se falar em princípio da minimização. Basta que o município realize uma operação de tratamento dos dados existentes no seu banco, classificando-os. 

 

Outro aspecto a ser observado é que, assim como os tabeliães formalizam títulos aptos ao registro para transmissão da propriedade, também são títulos as sentenças judiciais, as cartas de arrematação, de adjudicação, os formais de partilha. Se a intenção é obter ter acesso aos dados de transmissão de titularidade, o mesmo dever de comunicação deveria recair sobre o Poder Judiciário.

 

Com efeito, jargões do gênero “quanto mais melhor” fortalecem velhos ideais enciclopédicos, que podem não mais corresponder à eficiência da máquina pública; ao contrário, podem ensejar a criação de procedimentos onerosos e riscos desnecessários.  Não à toa o sociólogo Ulrich Beck sinalizava os riscos da exposição demasiada de dados pessoais em um estado de vigilância.12 O tratamento previsto no art. 4º, caput, da Resolução 457 do CNJ é inadequado, na medida que duplicará os dados nos sistemas dos municípios, podendo gerar redundância não controlada e assíncrona, lembrando que os mesmos dados serão tratados quando do preenchimento do formulário de avaliação pela Prefeitura para gerar a guia, pelo tabelião de notas quando da lavratura da escritura e pelo registrador de imóveis quando do registro, aumentando o risco de incidente de segurança e exigindo a adoção de medidas de segurança, técnicas e administrativas adequadas para proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão tanto pelos notários e registradores quanto pelos municípios. Sob a perspectiva da eficiência da administração pública (art. 37, CF), sobrecarregar o sistema com informações já existentes nos bancos de dados do município é um contrassenso e uma exposição desnecessária.

 

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1 STF. Tema 1184. Extinção de execução fiscal de baixo valor, por falta de interesse de agir […]. Disponível aqui.

 

2 CNJ. Resolução 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF. Disponível aqui.

 

3 CNJ. Resolução 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF. Disponível aqui.

 

4 Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades: […] II – atuar como mediador ou conciliador. In: BRASIL. Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios). Disponível aqui.

 

5 CNJ. Resolução 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF. Disponível aqui.

 

6 CNJ. Resolução 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF. Disponível aqui.

 

7 Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: […] X – tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração. In: BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível aqui.

 

8 BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível aqui.

 

9 ANPD. Guia Orientativo: Tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. Versão 2.0. Jun/2023. Disponível aqui.

 

10 ANPD. Guia Orientativo: Tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. Versão 2.0. Jun/2023. Disponível aqui.

 

11 Art 1º – Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei. […]

 

  • 2º O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição. In: BRASIL. Lei 7.433, de 18 de dezembro de 1985. Dispõe sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas e dá outras providências. Disponível aqui.

 

12 BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 193: “em vez de procurar uma só agulha no palheiro, a abordagem era ‘vamos recolher o palheiro todo'”.

 

Fonte: Migalhas

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