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Artigo – Da violação da lei à delação da pobreza, as nuances da adoção à brasileira – por Fernando Guida Sandoval e William Callegaro

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A intenção do praticante é um aspecto que notavelmente influencia no julgamento de crimes no Brasil. A depender do caso analisado, pode significar a diferença entre receber o rótulo de criminoso ou de herói. O espaço para tamanha discricionariedade judicial pode ser observado no crime de adoção à brasileira, que chega a denominar nobres atitudes tipificadas como crime. Todavia, para além da aparente contradição inicial, um exame aprofundado revela questões urgentes quando o assunto é adoção ilegal.

A adoção à brasileira, como ficou conhecida a adoção ilegal no Brasil, consiste no registro de filho de outra pessoa em nome próprio sem a devida subordinação ao processo judicial de adoção. A prática é motivada por diferentes intenções. Em alguns casos, pessoas que realmente desejam ter filhos por meio da adoção pretendem burlar a burocracia legal para chegar a um resultado mais rápido. Em outros, ao se deparar com crianças que vivem em situações de vulnerabilidade junto à sua família biológica, pessoas que não consideravam adotar decidem registrá-las para garantir uma vida melhor e com mais oportunidades.

Independentemente da motivação por trás da adoção, o adotante que não segue o procedimento estipulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente incorre nos crimes previstos nos artigos 242 e 299 do Código Penal, que tipificam a adoção ilegal e a falsidade ideológica. Todavia, assim como opera a tipificação do crime, o artigo 242 também prevê que, se praticado por motivo de reconhecida nobreza, a pena de dois a seis anos de reclusão é reduzida para um máximo de dois anos, sendo a sua aplicação sujeita à discricionariedade do juiz, que pode até mesmo deixar de aplicar a pena.

A expressão “reconhecida nobreza”, pode-se afirmar, é usada em referência aos casos em que a adoção ilegal é motivada pela intenção de proporcionar melhores condições a jovens que vivem em situações de vulnerabilidade. Para especialistas no tema, esse tipo de adoção é especialmente perigosa porque nem sempre é acompanhada por um senso de responsabilização por parte dos pais adotivos, que muitas vezes encaram a ação como caridade. A adoção vista como um ato altruísta é uma das causas do abandono de crianças mais velhas, que são desamparadas pela família adotiva quando as primeiras dificuldades de adaptação aparecem.

A questão é problemática também na esfera social, uma vez que relativiza o dever constitucional do Estado de tomar medidas para garantir direitos e o bem-estar dos cidadãos, consubstanciado no princípio da dignidade humana. É possível afirmar que o excludente consagrado pelo artigo 242 reflete uma visão reducionista de que a intenção de prover condições materiais dignas torna os adotantes ilegais automaticamente aptos para o exercício da parentalidade. Nesse processo, os laços afetivos tidos entre a criança e sua família biológica, assim como a qualidade da relação estabelecida entre os menores e os pais adotivos, são muitas vezes ignorados em prol de uma solução fácil para o problema da pobreza. Além disso, o que pode parecer apenas uma saída imediata para o problema é também uma brecha para que o Estado mantenha sua omissão diante da responsabilidade como agente social e, nesse caso, da obrigação de garantir condições suficientes para que os pais biológicos possam prover as necessidades básicas dos filhos.

A adoção ilegal não tem como vítimas apenas os jovens adotados. No outro extremo do espectro, estão as mães biológicas e os adotantes que não optaram por burlar o sistema legal, mas foram enganados em revoltantes casos de tráfico de menores. Ao longo dos últimos anos, cada vez mais histórias de jovens adotados de forma ilegal por famílias de outros países têm vindo à público. Um dos casos mais notórios já registrados diz respeito ao esquema de tráfico internacional de crianças coordenado por uma quadrilha que atuava no sul do Brasil no final da década de 80, um esquema milionário que envolvia adoções ilegais para casais na Inglaterra, Canadá e, principalmente, Israel.

No Brasil, mulheres disfarçadas de assistentes sociais enganavam mães brasileiras em situações de vulnerabilidade e as convenciam a doar seus bebês, prometendo que elas teriam acesso aos filhos quando quisessem. Em Israel, advogados prometiam contornar dificuldades burocráticas e intermediavam o processo junto às famílias adotivas que não sabiam estar envolvidas em um esquema criminoso. A quadrilha tornava vítimas todas as partes envolvidas no processo de adoção.

As consequências dramáticas são suportadas ainda hoje. Como resultado, as crianças vítimas da adoção ilegal tiveram negado o seu direito de saber a sua origem biológica, enquanto muitas mães foram privadas de ver os seus filhos para sempre. Uma vez fora do país e com os documentos falsificados, o reencontro entre os jovens adultos e suas famílias biológicas se torna uma missão quase impossível. Mesmo com a ajuda de ONGs que ajudam brasileiros ilegalmente adotados a buscar as suas famílias de origem, centenas de jovens seguem sem o menor indício de como encontrar as suas mães biológicas.

A urgência do combate às adoções ilegais entre países foi destacada por relatores da ONU em um comunicado emitido em setembro de 2022. No documento, os especialistas exigem que as nações se comprometam com a prevenção e eliminação de adoções ilegais entre países, que podem configurar até mesmo crime contra a humanidade.

Seja dentro do país ou além das fronteiras, a adoção ilegal continua a vitimar crianças brasileiras. Os esforços para extinguir a prática devem passar por uma aplicação da lei que leve em consideração não apenas a intenção dos praticantes, mas o bem-estar dos menores envolvidos. Sobretudo, é imprescindível que o Estado assuma a sua responsabilidade como garantidor de direitos básicos para que a pobreza não force a separação entre pais e filhos. Com a dignidade das crianças e adolescentes assegurada, ninguém precisará assumir o papel de herói.

Fernando Guida Sandoval é advogado pela USP e mestre em Direito pela Universidade de Chicago.

William Callegaro é advogado, ativista por direitos humanos e especialista em direitos fundamentais.

Fonte: ConJur

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