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Artigo – A lei 14.382/22 e o tratamento da conversão da união estável em casamento – Por Flávio Tartuce

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A lei 14.382, originária da MP 1.085, de dezembro de 2021, foi promulgada em 28 de junho de 2022, tratando, entre outros temas, do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP). Houve também a facilitação de procedimentos, sobretudo no âmbito extrajudicial, como no caso da conversão da união estável em casamento, tendo sido incluído um novo art. 70-A na lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) a respeito do tema.

 

No que concerne à conversão da união estável em casamento, o art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988, além de proteger a união estável como entidade familiar, estabelece que deverá “a lei facilitar sua conversão em casamento”. O Código Civil de 2002, em seu art. 1.726, tratou dessa conversão, prevendo que “a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil”. Como sempre destaquei, o dispositivo apresentava graves inconvenientes.

 

Isso porque a lei não possibilitava expressamente a conversão administrativa ou extrajudicial, pois haveria a necessidade de autorização judicial, o que a tornava dificultosa, contrariando a ordem constitucional, que, como visto, fala em sua facilitação. Justamente por isso, o antigo Projeto Ricardo Fiuza (PL 699/2011) há tempos pretendia alterar o dispositivo, no sentido de prever que a conversão deveria ocorrer “perante o oficial do Registro Civil do domicílio dos cônjuges, mediante processo de habilitação com manifestação favorável do Ministério Público e respectivo assento”. No mesmo sentido, em complemento, era o projeto de Estatuto das Famílias do IBDFAM, pela previsão do art. 65.

 

Nessa realidade, os Estados da Federação regulamentaram a conversão extrajudicial, mediante provimentos das corregedorias dos Tribunais de Justiça. Era o caso do Rio Grande do Sul, pelo antigo Provimento n. 27/2003; do Mato Grosso do Sul, via o antigo Provimento n. 7/2003; e de São Paulo, por meio do antigo Provimento 25/2005. Quanto ao último, é a sua redação, constante das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo:

 

“Da Conversão da União Estável em Casamento

 

  1. A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos companheiros perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais de seu domicílio.

 

87.1. Recebido o requerimento, será iniciado o processo de habilitação sob o mesmo rito previsto para o casamento, devendo constar dos editais que se trata de conversão de união estável em casamento.

 

87.1.1. Em caso de requerimento de conversão de união estável por mandato, a procuração deverá ser pública e obedecer aos requisitos do item 83, do Capítulo XVII destas Normas.

 

87.2. Estando em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de autorização do Juiz Corregedor Permanente, prescindindo o ato da celebração do matrimônio.

 

87.3. O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro ‘B’, exarando-se o determinado no item 80 deste Capítulo, sem a indicação da data da celebração, do nome do presidente do ato e das assinaturas dos companheiros e das testemunhas, cujos espaços próprios deverão ser inutilizados, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento.

 

87.4. A conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento, sujeitando-se à adoção do regime matrimonial de bens, na forma e segundo os preceitos da lei civil.

 

8.7.5. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou período de duração desta, salvo nas hipóteses em que houver reconhecimento judicial dessa data ou período.

 

87.6. Estando em termos o pedido, o falecimento da parte no curso do processo de habilitação não impede a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento.

 

87.7. Antes da lavratura do assento, qualquer um dos companheiros poderá desistir da conversão de união estável em casamento, manifestando o arrependimento por escrito ao Oficial responsável”.

 

Nota-se que o provimento paulista já dispensava a ação judicial, desobedecendo ao que consta do Código Civil de 2002. Porém, o citado provimento sempre esteve de acordo com o Texto Maior, pois facilitava a conversão ao mencionar a via administrativa ou extrajudicial. Em suma, chegava-se a afirmar que o provimento seria ilegal em relação à codificação privada, mas legal e constitucional se fosse levada em conta a Constituição Federal. Essas conclusões revelavam certo caos legislativo a respeito da temática da conversão da união estável em casamento, que agora foi resolvido.

 

No âmbito da doutrina, igualmente existiam manifestações no sentido de se dispensar a ação judicial. Quando do XII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do Instituto de Direito de Família e das Sucessões, realizado em Belo Horizonte em outubro de 2019, aprovou-se o Enunciado n. 31 do IBDFAM, estabelecendo que “a conversão da união estável em casamento é um procedimento consensual, administrativo ou judicial, cujos efeitos serão ex tunc, salvo nas hipóteses em que o casal optar pela alteração do regime de bens, o que será feito por meio de pacto antenupcial, ressalvados os direitos de terceiros”.

 

Seguindo o que estava nas normas administrativas dos Estados e o clamor doutrinário, a lei 14.382/2022 tratou de forma correta e precisa da questão, sofrendo grande influência da norma paulista e praticamente reproduzindo os procedimentos aqui antes transcritos em destaque. Conforme o novo art. 70-A da Lei de Registros Públicos, a conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos companheiros perante o oficial de registro civil de pessoas naturais de sua residência. Dispensa-se, portanto, a ação judicial, para tanto seguindo-se, finalmente e por meio de norma jurídica, a ordem constitucional de sua facilitação.

 

Consoante o seu § 1º, recebido o requerimento de conversão, será iniciado o processo de habilitação sob o mesmo rito previsto para o casamento, e deverá constar dos proclamas que se trata de conversão de união estável em casamento. Além disso, em caso de requerimento de conversão de união estável por mandato, a procuração deverá ser por escritura pública e com prazo máximo de trinta dias (art. 70-A, § 2º, da Lei de Registros Públicos).

 

Se estiver em termos o pedido, ou seja, sem qualquer problema de forma ou de essência, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de autorização judicial, prescindindo-se ou dispensando-se o ato da celebração do matrimônio (art. 70-A, § 3º, da Lei de Registros Públicos). O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro B, sem a indicação da data e das testemunhas da celebração, do nome do presidente do ato e das assinaturas dos companheiros e das testemunhas, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento (art. 70-A, § 4º, da Lei de Registros Públicos).

 

Além disso, a conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento, previstos no art. 1.521 do Código Civil, sujeitando-se à adoção do regime patrimonial de bens, na forma dos preceitos da lei civil (art. 70-A, § 4º, da Lei de Registros Públicos). Assim, em regra, na citada conversão será adotado o regime da comunhão parcial de bens, que é o regime legal ou supletório do casamento (art. 1.640 do Código Civil).

 

Questão interessante diz respeito à imposição do regime da separação legal ou obrigatória de bens, tratado no art. 1.641 do Código Civil, em havendo a citada conversão, como na hipótese de serem um dos cônjuge ou ambos maiores de setenta anos. Sobre a dúvida, o Enunciado n. 261, da III Jornada de Direito Civil, prevê que “a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade”. Da jurisprudência superior, aplicando a premissa constante da ementa doutrinária, do Superior Tribunal de Justiça, posição que dever ser mantida com o surgimento da lei 14.382/2022:

 

“O reconhecimento da existência de união estável anterior ao casamento é suficiente para afastar a norma, contida no CC/16, que ordenava a adoção do regime da separação obrigatória de bens nos casamentos em que o noivo contasse com mais de sessenta, ou a noiva com mais de cinquenta anos de idade, à época da celebração. As idades, nessa situação, são consideradas reportando-se ao início da união estável, não ao casamento” (STJ, REsp 918.643/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 26.04.2011, DJE 13.05.2011).

 

Pontue-se que o acórdão menciona idades diversas do homem e da mulher, porque diz respeito a fatos que ocorreram na vigência do Código Civil de 1916, incidindo a última norma. Mais recentemente, do mesmo Tribunal Superior, entendeu-se que “afasta-se a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico. Interpretação da legislação ordinária que melhor a compatibiliza com o sentido do art. 226, § 3.º, da CF, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento” (STJ, REsp 1.318.281/PE, 4.ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 1.º.12.2016, DJe 07.12.2016). Reafirmo que essa conclusão tende a ser mantida com o novo tratamento legislativo.

 

Voltando-se ao art. 70-A da Lei de Registros Públicos, o seu § 6º enuncia que “não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou o período de duração desta, salvo no caso de prévio procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil”. Nessa previsão, como bem aponta Márcia Fidelis Lima, parece haver um erro material, ou “a sua redação não deixou clara a intenção do legislador” (LIMA, Márcia Fidélis. lei 14.382/2002 – primeiras reflexões interdisciplinares do registro civil das pessoas naturais e o Direito das Famílias. Revista IBDFAM – Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 51, maio/jun. 2022. p. 35). Interroga a autora: “o que seria o ‘procedimento de certificação eletrônica’? Seria algo que apontasse o prévio procedimento de registro no Livro E? Seria algo parecido com um processo judicial de justificação? Não ficou clara essa redação, a menos que a linguagem seja específica e tecnicamente utilizada em sede de tecnologia da informação”. Entendo que caberá às Corregedorias de Justiça dos Estados ou mesmo ao Conselho Nacional de Justiça regulamentar esse novo procedimento.

 

Como última norma a respeito da conversão, o § 7º do novo art. 70-A da lei 6.015/1973 enuncia que, se estiver em termos o pedido, o falecimento da parte no curso do processo de habilitação não impedirá a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento. Trata-se de norma que mais uma vez segue solução dada no Estado de São Paulo, por meio de decisão de sua corregedoria-geral de Justiça, no ano de 2005:

 

“Registro Civil de Pessoas Naturais. Conversão de união estável em casamento. Requerimento conjunto dos conviventes. Falecimento do varão no curso do processo de habilitação que, apesar disso, foi concluído. Inexistência de impedimento para o casamento. Desnecessidade de celebração e de assinatura dos cônjuges no assento. Possibilidade de sua lavratura. Ato do Oficial. Necessidade, apenas, de ser o requerimento submetido ao Juiz Corregedor Permanente. Antecedente desta E. Corregedoria-Geral da Justiça. Recurso provido para permitir a conversão pretendida” (Portaria de Decisão da Corregedoria-Geral da Justiça – Atos do Registro Civil – Conversão de união estável em casamento – Falecimento no curso de processo de habilitação, Proc. 834/2004, (328/2004-E), Recurso Administrativo, recorrente: Excelentíssimo Senhor Corregedor-Geral da Justiça: São Paulo, 30 de dezembro de 2004, José Marcelo Tossi Silva – Juiz Auxiliar da Corregedoria. Aprovo o parecer do MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria e por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso interposto. Publique-se. São Paulo, 04.01.2005. José Mário Antonio Cardinale – Corregedor-Geral da Justiça).

 

Expostas as novas previsões legais, observo que o art. 1.726 do Código Civil não foi revogado expressamente pela lei 14.382/2022. Ademais, não me parece ter havido revogação tácita – nos termos do art. 2º da LINDB -, pois a Lei de Registros Públicos trata apenas da conversão extrajudicial da união estável em casamento. Sendo assim, penso que ainda restará aos companheiros a opção de efetivarem a conversão judicial, apesar de ser importante reconhecer que essa solução restará esvaziada, na prática, pela via extrajudicial.

 

A esse propósito, entendeu o Superior Tribunal de Justiça, em 2017, que os companheiros poderiam fazer uso de qualquer uma das duas vias, não havendo obrigatoriedade na conversão extrajudicial. Nos termos do aresto, “os arts. 1.726 do CC e 8.º da lei 9.278/96 não impõem a obrigatoriedade de que se formule pedido de conversão de união estável em casamento exclusivamente pela via administrativa. A interpretação sistemática dos dispositivos à luz do art. 226, § 3.º, da Constituição Federal confere a possibilidade de que as partes elejam a via mais conveniente para o pedido de conversão de união estável em casamento” (STJ, REsp 1.685.937/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 17.08.2017, DJe 22.08.2017).

 

Como se percebe, o acórdão superior reconheceu, no sistema anterior, a possibilidade da via administrativa para a conversão da união estável em casamento, mas concluiu não ser ela exclusiva. Acredito que esse entendimento será mantido pela Corte, mesmo com o novo texto do art. 70-A, caput, da lei 6.015/1973. 

 

Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

 

Fonte: Migalhas

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